Breve História do Montanhismo

Textos e fotos extraídos do livro Escale Melhor e com Mais Segurança dos autores Flavio e Cintia Daflon. Reproduções somente com autorização prévia.
Textos e fotos extraídos do livro Escale Melhor e com Mais Segurança dos autores Flavio e Cintia Daflon. Reproduções somente com autorização prévia.

Quando começou a ser praticado o montanhismo? Os europeus diriam que foi em 1786, com a conquista do Mont Blanc (4.808m), ponto culminante dos Alpes, na fronteira França-Itália. Mas, dependendo do que se considera montanhismo, pode até ter sido antes. Aliás, boa pergunta: o que se define por montanhismo? É quando se escala apenas por puro prazer e realização pessoal, ou também quando se é movido por razões religiosas, científicas, econômicas ou até militares? Alguns historiadores consideram a ascensão do poeta italiano Francesco Petrarca ao Mont Ventoux (1.912m), na França, em 24 de abril de 1336, como a primeira ascensão documentada de uma montanha com fins puramente pessoais – no caso, para fazer reflexões filosóficas -, sem desejo de conquista ou exploração. Petrarca descreveu1 com tanta riqueza de detalhes a beleza e os mistérios de sua jornada, que acabou sendo chamado de Pai do Alpinismo. Dois anos antes dele, em 1334, o filósofo Jean Buridan já havia feito o cume do Ventoux, a fim de buscar argumentos cosmológicos para seus escritos. Pouco depois, em 1358, Boniface Rostario d’Asti fez o cume do Rochemelon (3.557m) na região do Piemonte, Itália, que acabou se tornando local de peregrinação. Esta foi a primeira ascensão conhecida de um cume com mais de 3.000m nos Alpes. Mas, para outros estudiosos, foi Antoine de Ville quem fez o primeiro cume que de fato envolveu escalada, indo além de uma simples caminhada de altitude, ao chegar ao cume do Mont Aiguille (2.087m) no maciço do Vercors, também na França, em 26 de junho de 1492. De Ville, no entanto, não escalou por motivação estritamente pessoal, já que o fez a mando do rei de França, Charles VIII.

Fora do Velho Mundo, porém, há muitos relatos e comprovadas ascensões a cumes de montanhas desde épocas bem mais remotas. No Japão, por exemplo, o monge Em no Chokaku fez a primeira ascensão ao cume nevado do monte Fujiyama (3.776m) em 633, o que é considerado o primeiro relato escrito de uma montanha de altitude considerável. Já na América do Sul, os incas comprovadamente pisaram, entres outros, no cume do Llullallaico (6.723m), por volta do ano 1400, ou seja, mais de 100 anos antes da chegada dos colonizadores espanhóis. No entanto, os incas subiam aos cumes das montanhas para fazer oferendas aos deuses, tanto que no próprio Llullallaico foram encontradas três múmias de crianças muito bem conservadas, que hoje estão expostas no Museu de Arqueologia de Alta Montanha, na cidade de Salta, Argentina. Incas, monges japoneses, poetas e filósofos europeus à parte, o fato é que não está errado quem diz que o montanhismo começou de fato com a conquista do Mont Blanc, em 1786.

A saga da conquista do Mont Blanc iniciou-se em 1760, quando o filósofo e naturalista suíço Horace Bénedict de Saussure, natural de Genève, mas um apaixonado por Chamonix, ofereceu um prêmio em dinheiro para quem encontrasse uma rota viável até o cume da montanha, a mais alta dos Alpes. Saussure tinha por objetivo fazer medições científicas no cume da montanha. Várias tentativas foram feitas, sendo que em uma delas, até se ganhou certa altura, mas os ousados aventureiros voltaram, porque a ascensão deveria ser feita em apenas um dia. “As pessoas não acreditavam que fosse possível aventurar-se a passar a noite naquelas neves”, teriam dito a Saussure. Finalmente, às 18h23m do dia 8 de agosto de 1786, os franceses Jacques Balmat e Michel Gabriel Paccard, ambos naturais de Chamonix, pisaram o cume da montanha. Paccard, 21 anos, era médico de família rica, enquanto que Balmat, 34, tinha origem humilde, era guia de montanha e caçador de cristais nos Alpes.
O que faz esta primeira escalada ao Mont Blanc ser considerada como o marco zero do montanhismo é que, antes dela, nada mudara no mundo em função das ascensões conhecidas, já que elas não geraram nenhum movimento. Até então, só o vento, os dragões e os deuses reinavam nas alturas. Após o Mont Blanc, as montanhas deixaram de ser reinos terríveis, onde ninguém sobrevivia, nem mesmo por uma só noite, e passaram a ser exploradas e conhecidas de fato.

A revista espanhola Desnível, em seu editorial da edição de número 1422, define bem este movimento: “A partir de 1786, nada mais parou a busca da beleza que existe nas montanhas. A primeira ascensão ao Mont Blanc foi um grito no cume, cujo eco se estendeu por todo o mundo e que trouxe em seguida novas ascensões. Calou-se ali onde estavam preparados para entendê-lo”. E continua: “As repetições ao Mont Blanc e primeiras ascensões a cumes alpinos mais acessíveis, deram passo a objetivos mais desafiantes. Mas, acima de tudo, veio algo muito mais importante. Então, e não antes, se desencadeou um movimento que trouxe consigo um universo cultural próprio. Graças a ele, o alpinismo mundial se encheu de grandes obras pictóricas, literárias, fotográficas e cinematográficas”. Foi mais do que uma simples revolução alpina, foi uma revolução humana, pois ali surgia o alpinismo, três anos antes da Revolução Francesa e em plena Revolução Industrial.
O Mont Blanc não é a montanha mais alta da Europa, pois perde em altura para o Elbrus (5.642m) no Cáucaso ocidental, na Rússia, mas é a mais alta de todos os cumes vizinhos, que formam o epicentro do movimento alpinístico mundial. Balmat voltou à montanha em junho de 1787, na companhia de outros dois guias, para realizar a segunda ascensão. Finalmente, em agosto deste mesmo ano, Saussure, então com 47 anos, realizou seu sonho pisando o cume do Mont Blanc, acompanhado por Balmat e mais 18 ajudantes, na terceira ascensão ao cume da montanha. “Não dava crédito aos meus olhos, parecia-me um sonho, quando vi a meus pés estas cimas majestosas, estas agulhas terríveis”, escreveu o suíço.